Fundação Palmares: e eu com isso?

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Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos
(Agostinho Neto)

Quando, em 2015 – sobressaltado após assistir a uma vergonhosa manifestação de jovens militantes do movimento negro dentro de uma universidade pública –, resolvi voltar a falar sobre racismo no Brasil, minha preocupação não era ideológica. Explico: eu não estava interessado (como ainda não estou) em disputar um espaço político com os movimentos organizados, tampouco em lhes menosprezar a importância. Minha crítica está concentrada naquilo que José Correia Leite chamou de “correria atrás de política” ou na submissão interpretativa a teorias pós-modernas que pouco têm a ver com os reais problemas brasileiros relacionados aos negros. Essa, evidentemente, não é uma constatação minha e nem é nova; outros, verdadeiramente representantes na luta histórica do movimento negro, fizeram essa crítica antes de mim. Abdias Nascimento, por exemplo, dissera outrora: “a esquerda é cega, surda e muda no que se refere aos problemas específicos do negro, e despreza sua tradição cultural. (…) Para eles também, ‘todos são iguais perante a lei’… do proletariado. Pobre de quem quiser ser diferente!”

A Frente Negra Brasileira, para além das polêmicas convicções políticas de seu principal líder e fundador, Arlindo Veiga dos Santos, expôs no editorial de sua edição de estreia, em 1933:

Não podemos, pois, permitir que impunemente uma geração atual, que é um simples momento na vida eterna da Nação, traia a Pátria, quer atirando-se nos erros materialistas do separatismo (que nada mais é que o efeito da concepção do “materialismo histórico” – a economia, a riqueza material acima de tudo), quer namorando a terra-a-terra socialista na sua mais legítima expressão que desfecha no bolchevismo, pregado pelos traidores nacionais ou estrangeiros, e cuja resposta é e há de ser o aniquilamento violento, seja ele adotado por cidadão do povo, seja ele adotado por governos que traiam a nacionalidade.

Minha crítica está concentrada na submissão interpretativa a teorias pós-modernas que pouco têm a ver com os reais problemas brasileiros relacionados aos negros

Com esses exemplos não quero, em hipótese alguma, chavear a luta politicamente à direita ou mesmo demonizar, peremptoriamente, as escolhas ideológicas feitas pela maioria dos movimentos nas últimas décadas. O que desejo é ampliar o debate, plantar o dissenso, o contraditório, e questionar a hegemonia. Não somente por discordar do coletivismo arbitrário que tomou conta do discurso de setores do movimento negro, sobretudo o acadêmico – que demoniza o indivíduo, o mérito e o valor dos modelos exemplares –, mas porque considero o maniqueísmo político, diante de circunstâncias tão complexas, um sinal de estupidez ou má-fé.

No ensaio em que critica, de forma veemente, Booker T. Washington – debate de que trato em detalhes em meu curso “O Brasil é um país racista?” –, W. E. B. Du Bois não menospreza o valor de seu antecessor; suas diferenças são de método (que não considero antagônicos, mas complementares) no modo de tratar a inserção e o progresso dos negros na sociedade americana do pós-abolição. Booker T. Washington, cuja história o atento leitor pôde ler aqui, nesta Gazeta do Povo, era, por sua história de vida e seus relacionamentos, um conservador, julgando mais adequado que os negros tivessem, primeiramente, ascensão econômica por meio de formação técnica e trabalho, e só depois se preocupassem com a integração com os brancos. Já Du Bois, o primeiro negro a receber um título de Ph.D. pela Universidade de Harvard, em 1895, um negro nascido num estado do norte e descendente de holandeses – um dândi, como diz o filósofo Kwame Appiah, estudioso de sua vida e obra –, era um ativista acadêmico, mais preocupado com o progresso intelectual dos negros e julgando ser necessário, primariamente, disputar espaços teóricos a fim de se apropriar da cultura dominante e alcançar, mediante a liderança de “homens excepcionais” – A décima parte talentosa (Talented Tenth), segundo Du Bois –, o progresso.

Logo no início de seu ensaio, publicado em As almas da gente negra, Du Bois reconhece a dificuldade para criticar um homem como Washington, “uma das figuras mais notáveis em uma nação de 70 milhões de habitantes”, e se propõe a apresentar o que ele considera “os erros e as falhas da carreira do sr. Washington, assim como de seus triunfos, sem ser considerado capcioso ou invejoso, e sem esquecer que, neste mundo, é mais fácil fazer o mal do que o bem”. Ou seja, reconhece o imenso valor daquele que, antes dele, tanto fez pelos seus irmãos. Em seguida, afirma que:

O sr. Washington representa no pensamento negro a velha atitude de ajustamento e submissão; porém ajustamento em uma época peculiar, de modo a tornar o seu projeto inigualável. Esta é uma época de desenvolvimento econômico fora do comum, e o projeto do sr. Washington naturalmente adota um molde econômico, tornando-se um evangelho de Trabalho e Dinheiro a tal ponto que, visivelmente, quase ofusca por completo os objetivos mais elevados da vida.

Mas, com isso, Du Bois diz que Washington estava, de certo modo, aceitando as injustiças cometidas contra os negros no Sul, mesmo reconhecendo que, “em diversas instâncias ele se opôs, no Sul, a manobras injustas contra o Negro”. Mas “é igualmente verdade afirmar que, no conjunto, a clara impressão deixada pela propaganda do sr. Washington é, em primeiro lugar, que o Sul está justificando na sua atitude presente para com o Negro por causa da degradação do Negro; em segundo, que a principal causa do fracasso do Negro em ascender mais rápido é a sua educação errônea no passado; e, em terceiro, que sua futura ascensão depende primordialmente de seus próprios esforços. Cada uma dessas proposições é uma perigosa meia-verdade”. E argumenta dizendo que o preconceito racial é, ainda, um impeditivo para a ascensão social dos negros; que a formação profissional demorou a ser implantada pela necessidade anterior de formar e capacitar professores negros; e, por fim, que a luta dos negros deveria, somada a seus próprios esforços, ser estimulada por uma elite mais rica e sábia. Por fim, declara que “enquanto o sr. Washington pregar a Economia, a Paciência e a Educação Industrial para as massas, devemos apertar a sua mão e lutar com ele, alegrando-nos com suas honrarias e glorificando a força deste Josué chamado por Deus e pelos homens para conduzir o rebanho à deriva. Porém, enquanto o sr. Washington desculpar a injustiça, no Norte e no Sul, enquanto não valorizar corretamente o privilégio e o dever do voto, enquanto minimizar os efeitos castradores das distinções de casta e se opuser à educação superior e à ambição dos nossos espíritos mais brilhantes (…), devemos refutá-lo sem trégua, com toda firmeza”. Isso se chama honestidade intelectual.

Não se trata da luta de um homem contra o outro, mas de um embate de ideias, de maneiras diferentes de enxergar o mesmo problema, de analisá-lo de acordo com diferentes vivências e perspectivas de conhecimento. Mas o que vejo no debate público atual, principalmente nas redes sociais, em relação à mais importante discussão de nossa história – a escravidão e sua herança maldita, o racismo –, é um radicalismo eivado daquele sentimentalismo tóxico que paralisa e elege algozes e vítimas de maneira absolutamente inconsequente. Eu, por exemplo, por pensar de maneira independente, sou perseguido (caçado) nas redes sociais, por negros e brancos, e, numa inversão canalha, sou xingado de capitão do mato. Tão absurda e caricata é essa postura que acabou por produzir o seu duplo, representado não por mim, mas por Sérgio Camargo, o novo presidente da Fundação Palmares, um ilustre desconhecido cujas declarações em redes sociais o transformam numa das escolhas mais controversas do governo para o posto que irá ocupar. Um crítico veemente do movimento negro a presidir um órgão que representa uma conquista do próprio movimento. O radicalismo de Camargo – autointitulado negro de direita –, aos moldes da polarização Bolsonaro-Lula, é a simbiose do radicalismo e da histeria da esquerda. Suas opiniões são similares, no tom e no maniqueísmo, a qualquer comentário, por exemplo, pinçado de haters em postagens dos filhos do presidente ou de qualquer um que, tendo relevância, associe-se ao governo. O caso recente com o ginasta Diego Hypólito, que apenas publicou uma foto ao lado do presidente, é um exemplo cabal.

Estou longe de me classificar como “negro de direita”, tampouco desejo a extinção do movimento negro

É evidente que, em algum grau, as opiniões de Camargo e as minhas convergem. O conceito de escravidão ideológica – se não criado, difundido por mim para classificar a submissão intelectual da maioria dos movimentos a teorias europeias pós-modernas e a partidos de esquerda – encontra eco na afirmação de Camargo de que “negro de esquerda é escravo”; no entanto, estou longe de me classificar como “negro de direita”, uma vez que considero tal alcunha, igualmente, fruto de escravidão ideológica. Tampouco desejo a extinção do movimento negro – que considero importante, apesar de ter sido ideologicamente sequestrado. Como gosto de afirmar, sou um homem livre, e a liberdade, para mim, é um direito radical. Se me considero conservador, é porque creio em princípios conservadores – dentre eles, o total pessimismo político.

Sucesso a Sérgio Camargo à frente de uma instituição que parece odiar. E sucesso ao movimento negro na luta contra aquele que parece ter invadido a Troia Negra para a destruir.

Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil. 

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