Aos olhos enviesados dos ocidentais, nada parece ter acontecido. Mas, após quatro dias de reuniões que reuniram a elite política e militar da China, o Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCChinês), alçou o atual líder Xi Jinping à altura de herói vitalício junto aos seus camaradas Mao Zedong e Deng Xiaoping. Tal determinação pode ser considerada como uma total consolidação de poder abrindo caminho para que Xi Jinping estenda seu mandato indefinidamente.
Mas, em termos econômicos, o que será que isso significa? Xi nunca apreciou os horrores da Revolução Cultural (1966 – 1968) ou do Grande Salto à Frente (1958 – 1962) ambos movimentos liderados por Mao Zedong. Tão pouco apreciou a abertura e a implantação de um capitalismo de estado dividindo o setor privado e a política como o fez Deng Xiaoping. Xi parece ter um pensamento mais socialista que seus antecessores, com exceção de Mao.
Para Xi, o acúmulo de capital conquistado pela China desde 1979 é o ponto nevrálgico para que uma economia capitalista de estado se torne verdadeiramente mais socialista. Não será fácil, apesar de seguir os preceitos do Marxismo, que preconiza a necessidade de se percorrer a evolução inexorável das forças de produção em conjunto com as relações de produção. Para Marx, o acúmulo de capital era condição necessária para a implantação do socialismo, em que as estruturas de incentivos se tornam mais brandas e as estruturas salarias mais equalitárias. Erro cometido por Mao e Stalin, que notadamente buscaram alcançar o socialismo e posteriormente o comunismo, sem o necessário acúmulo de capital, como postulado por Marx, impossibilitando o desenvolvimento econômico.PUBLICIDADE
Percebe-se aí o fracasso retumbante do Grande Salto à Frente, que dizimou mais de 20 milhões de chineses por inanição, quando Mao transferiu centenas de milhares de chineses da zona rural e agrícola para a produção de aço, sem contar com a tecnologia e o capital necessários para substanciar a população com uma produção agrícola, prejudicada com a alocação de mais empregados na produção de aço do que na agricultura
Aparentemente, Xi entende que é chegada a hora de uma pequena guinada nas relações de produção da China, as quais talvez não levam os efeitos positivos tão eloquentemente evocados. Mas afinal o que muda na economia?
1. Maior intervenção em empresas privadas e maior alocação de capital em empresas estatais
Desde a posse de Xi Jinping, no final do ano de 2012, como Secretário Geral do Partido Comunista Chinês (PCChinês), a diretriz mor do governo tem sido aumentar o papel das SOEs (State Owned Enterprises ou Empresas Estatais) na economia do país, utilizando muitas vezes o argumento de que essas empresas devem ser suportadas e não abandonadas.
Entretanto, já existem evidências de que o menor crescimento econômico chinês observado desde 2012 deve-se na realidade a uma guinada na política do governo central, privilegiando SOEs ineficientes ao alocar recursos nessas mesmas empresas, que acabam por prejudicar o crescimento do país. Essa crescente alocação sub-ótima de capital em empresas deficitárias, apenas tenderá a retardar ainda mais o crescimento econômico do país.
Mas será que o desempenho das empresas estatais continua tão sofrível como era antes da entrada do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001?
Se analisarmos a figura 1, logo a seguir, notaremos que as empresas privadas sempre apresentaram retornos sobre ativos (ROA – Return on Assets) maiores do que as empresas estatais.
Um administrador de uma instituição financeira que buscasse maximizar a lucratividade de seus acionistas e fizesse bom uso do capital alocado certamente ofereceria mais empréstimos e a um menor custo às empresas privadas. Ainda analisando a figura, especificamente no ano de 2011, enquanto as empresas estatais apresentaram retornos sobre os ativos um pouco acima de 5%, as empresas privadas apresentaram um desempenho financeiro quase que 3 vezes maior.
Mesmo com o declínio do retorno das empresas privadas a partir de 2011, pelo menos até o ano de 2016 o retorno dessas empresas sobre o total de ativos ainda estava acima dos 10%, enquanto as empresas estatais amargaram uma queda na rentabilidade sobre os ativos de um pouco mais de 5 por cento para menos de 2,5%.
Já a figura 2 a seguir nos mostra a tendência de alocação maior de recursos para empresas estatais se comparado às empresas privadas.
Nota-se que, até 2013, a maior parte das concessões de crédito para empresas não-financeiras se direcionava para as empresas privadas (Smal and Medium Enteprises – SMEs). Mais particularmente em 2013, enquanto o percentual de concessão de crédito para as empresas privadas representava 57% do total de concessões de crédito para empresas não-financeiras, neste mesmo ano as empresas estatais receberam apenas 35%. Já em 2014, essa tendência se inverte pelo menos até 2016, quando as empresas privadas passaram a receber apenas 11% do total de concessões de crédito, enquanto as estatais recebiam 83%.
Mesmo que o atual líder Xi Jinping tenha demonstrado enorme assertividade em aumentar a participação das estatais na economia, a única maneira de reverter o momento de soft landing econômico que testemunha o país agora, seria através da utilização cada vez mais eficiente dos recursos e capital, ao invés de simplesmente alocá-los em projetos de retornos duvidosos, para dizer o mínimo.
Mas não nos parece que essa será a diretriz central do governo Xi Jinping daqui para frente. Muito pelo contrário. As recentes intervenções em empresas privadas parecem que Xi pretende dar mais valor a empresas estatais do que privadas, em determinados setores, mesmo que ao custo de uma menor rentabilidade. Independentemente de sua ideologia, colocar dinheiro em empresas menos lucrativas, obviamente resultará em um crescimento menor que o potencial. O resto é retórica e narrativa ideológica sem respaldo empírico.
2. E a geopolítica?
Não deixa de ser tentador acreditar que possivelmente a antiga ordem mundial do pré-guerra volte a se formar, baseada na multipolaridade, mas essa hipótese parece bastante remota. O mundo hoje em dia é muito diferente do mundo multipolar do estilo europeu que reinava antes da Segunda Grande Guerra. Hoje, os principais players de uma nova ordem não são apenas nações emergentes ou poderosas, mas também instituições internacionais, atores não-estatais, poderes regionais, corporações e organizações multinacionais.
Novas instituições, como o NDB (New Development Bank – Banco dos BRICS), o recém-criado Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB) e outras organizações multilaterais parecem não pretender suplantar os existentes órgãos multilaterais. Elas buscam um maior espaço para cooperar e influenciar na administração de uma nova ordem.
Na realidade, a China vem insistindo há tempos e reclamando dos seus poderes limitados de governança nas antigas instituições pós-Bretton Woods (FMI e Banco Mundial). Diferentemente de muitos alarmistas, que irrealisticamente esperam que a China acabe por destruir as existentes estruturas em um futuro próximo, muito provavelmente essas novas instituições não centristas ocidentais continuarão a investir em estruturas dominadas pelo Ocidente, esperando também por suas reformas, de modo a conferir-lhes a justa projeção geopolítica e econômica atual.
Ao mesmo tempo que aguardam que as antigas instituições pós Bretton Woods lhes confiram a devida projeção, esses novos órgãos multilaterais, protagonizados em grande parte por Xi Jinping, também estão prontos para abrigar outras nações, que similarmente se sentem mal representadas pelas atuais instituições ocidentais, de modo a satisfazer suas necessidades econômicas e aumentar a autonomia em relação aos EUA.
Mesmo que aparentemente o interesse em projetar sua relevância econômica e política no mundo criando novas instituições semelhantes à de Bretton Woods, os últimos acontecimentos têm mostrado que Xi Jinping parece cada vez menos propenso a tatear as pedras antes de atravessar o rio.
Note o cerco que o PCChinês tem feito em empresas de “internet consumer”, como Alibaba, Tencent, Baidu, Didi, etc. Para o PCChinês, o enorme capital alocado nessas empresas parece ser desproporcional ao movimento geopolítico que se forma.
Note que intervenções em empresas de chips, microprocessadores (a China está construindo uma em seu território semelhante a TMSC), hardware e inteligência artificial não foram submetidas ao escrutínio persecutório do partido. Para os chineses, além do capital, a utilização da capacidade intelectual e das mentes brilhantes dos profissionais de tecnologia tem sido “desperdiçada” com internet de consumidores, como Tik Tok e Byte Dance. Estranho? Pense como o ex-presidente dos EUA Harry Truman (1945-1953) se sentiria sabendo que os melhores cientistas da época estavam dedicados a fazerem o melhor cereal matinal pela Kellog´s, ao invés de estarem trabalhando no Projeto Manhattan?
a. E se a China continental concedesse total liberdade a Hong Kong e Taiwan? Existe essa possibilidade?
Em relação a Taiwan, uma breve digressão: em 1894, o Japão declararia guerra à China. Após seis semanas do início da guerra, não apenas Pyongyang (maior cidade da Coreia do Norte atualmente) fora capturada pelos japoneses, mas toda a frota de navios de guerra chineses do norte do país foi destruída. O império chinês Qing, então, mais uma vez humilhado por uma nação estrangeira, é forçado a assinar o Tratado de Shimonoseki, o qual estipulava o pagamento aos japoneses de 5.670 toneladas de prata como reparações de guerra, bem como ceder ao Japão a Ilha de Taiwan (Formosa), pescadores e a região de Liaodong na Manchúria (nordeste da China).
De 1894 a 1945, Taiwan era considerada uma região dominada pelos japoneses. Em 1945, após o final da Segunda Grande Guerra, os japoneses abandonam Taiwan de tal sorte que, de 1945 a 1949, a região poderia ser considerada terra de ninguém. Mas com a derrota dos nacionalistas liderados pelo então generalíssimo Chiang Kai-shek pelos comunistas de Mao Zedong após uma sangrenta guerra civil, os nacionalistas fugiram para Taiwan fundando a República da China, embora nunca reconhecida pela República Popular da China.
Se Hong Kong conquistar um maior espaço democrático ou até sua total independência junto a Pequim, é bem provável que novos clames por independência possam surgir ou se intensificar, principalmente pelas regiões autônomas e Taiwan, desencadeando, assim, um rastilho de pólvora de tensões sociais em toda a China de difícil controle.
Não se trata de defender a mão pesada de Pequim sobre essas regiões mas, se Hong Kong lograr conquistar sua independência, a China correria um sério risco de se transformar em uma União Soviética de 1991, desmantelando-se por completo. Dessa forma, se acreditar que alguma região autônoma da China ou alguma outra província logre conquistar total liberdade de Pequim, deve considerar que a China, como existe hoje, talvez siga o mesmo destino geográfico da antiga União Soviética.
b. Como os EUA agiriam em caso de anexação forçada de Taiwan?
Esse é o tipo de discussão que se deve evitar em público, principalmente na China. Primeiro que a China Continental nunca considerou Taiwan como um país independente, mas apenas uma província rebelde. Com a ascensão de Xi, quase uma declaração em letras garrafais pode ser interpretada que até o final de seu mandato (?), a ilha de Taiwan será anexada à China Continental.
É sabido que, desde 1979, os EUA consideram Taiwan parte da China continental, mas continuam a protegê-la de qualquer flexão de músculos mais abrangente por parte da China, além de supri-la com material bélico.
Nessa situação, poderíamos pensar em duas hipóteses:
b.1. Taiwan anexaria a China em menos de 3 semanas com seu poderio militar e os EUA enviariam esforços para mantê-la soberana
Neste caso, bem provável que esteja nos planos do atual líder Xi Jinping e, a despeito das forças norte-americanas estacionadas na Coreia do Sul, Filipinas, Guam, Japão e Austrália, dificilmente os EUA lograriam evitar essa anexação impulsiva. E se ocorrer, o que os EUA poderiam fazer? Entrar em um conflito em território ocupado taiwanês com enormes perdas humanas ou defender Taiwan em mar aberto? Certamente um dilema difícil para Joe Biden e seu sucessor.
b.2. Taiwan anexaria a China em menos de 3 semanas com seu poderio militar e os EUA desistiriam de defendê-la
Provavelmente uma hipótese preferida por grande parte da população norte-americana. Após saírem do Vietnã, da Síria e do Afeganistão, por que pais se orgulhariam de mandar seus filhos para defender uma ilha a milhares de quilômetros de distância em um conflito com a China? Esquece.
Mas se essa decisão for tomada por Washington, como ficariam países como a Coreia do Sul, Japão, Filipinas, Austrália e grande parte do sudeste asiático, que contam com o contra balanceamento de poder bélico dos EUA para conter o expansionismo chinês na região? Estariam os EUA roendo a corda? Qual sinal seria percebido pela Rússia caso isso acontecesse? Iriam os EUA intervir em uma eventual anexação da Letônia, Lituânia, Estônia e Montenegro pelos russos?
Enfim, momentos bem mais desafiadores se desenham no horizonte para a nova geopolítica que se desenha.